segunda-feira, 7 de abril de 2014

Conto "A última Eva", de Berilo Neves - Para os Colégios Promove, CEM e Professor Morais

Quando o Malaquias (esse velho criado preto que me acompanha há vinte anos) me trouxe os jornais, eu ainda gozava esse vago torpor delicioso que é como o crepúsculo matinal do sono… Com desinteresse, e bocejando, abri o Diário da República, cuja primeira página estava ocupada, toda ela, por uma notícia de sensação, sob o título “O mundo despovoa-se de mulheres!”. Corri os olhos pelo jornal e logo senti a grandeza da catástrofe. Começava, assim, a notícia do Diário da República:


Telegramas de todas as partes do mundo anunciam o aparecimento de uma epidemia cujos caracteres a tornam inédita na história epidemológica do universo. É uma doença estranha, ainda não identificada pelos patologistas e que só ataca as criaturas do sexo feminino. Em 24 horas morreram, na Rússia, cinco milhões de mulheres. Os seus maridos, filhos, irmãos etc., nada sofreram, entretanto. Parece tratar-se de um germe até agora desconhecido e cuja virulência só se revela no sangue das mulheres. Milionários norte-americanos, recém-casados, tomaram os seus iates ou embarcaram nos grandes transatlânticos com receio de que suas esposas se contaminassem do terrível mal, cuja mortalidade tem sido, até agora, de 100%. Mesmo a bordo, porém, a doença se tem manifestado, tornando inúteis todas as medidas até agora adotadas no sentido de salvar da destruição o sexo de Eva. Segundo o cálculo dos cientistas, a não se que se descubra um específico para a enfermidade, dentro de uma semana o mundo estará totalmente despovoado de mulheres. O sábio professor Banting, da Universidade da Filadelfia, acredita tratar-se de um espirilo, de virulência excepcional e crescente.


Tomei o meu café, lentamente, pensando no que seria o mundo sem as mulheres. A lembrança de antigos amores reviveu, de súbito, no meu espírito, trazendo à flor da memória as alegrias e as torturas que eles me tinham acarretado. É verdade que, naquele momento, não gostava, realmente, de nenhuma mulher, mas quantos amigos meus, ainda estariam apaixonados pelas suas esposas, ou pelos sucedâneos delas? E as senhoras, tão distintas, das minhas relações, com quem me aprazia conversar, aos domingos, no footing vespertino de Copacabana, ou nos jantares dançantes do Botafogo? Toda aquela gente — elegantíssima, perfumada, amando as belas frases e os belos automóveis — iria morrer por aí, estupidamente, vítima de uma doença de que não se sabia, sequer, o nome!

Essa perspectiva, tão sombria, que me encheu a fronte de suor, viria realizar-se, infelizmente, mais depressa do que o imaginava. À tarde, já os jornais registravam os primeiros casos da moléstia que eu resolvi chamar, de conta próprio, a ginacose. A Academia de Medicina, depois de três dias de discussão, aceitou o neologismo que batizava a moléstia, mas não conseguiu arranjar um remédio para as vitimas dela… E eu via a cidade despovoar-se de mulheres como uma praça forte ameaçada pelo inimigo. A Avenida, dantes tão iluminada de toilettes e sorriso de mulher, ficou sombria e triste. Os homens, de luto, passavam cabisbaixos e pensativos. A ausência das damas caiu como uma catástrofe, na alma dos homens. Elas eram — coitadas! — excelentes motivos ornamentais… Como é que se poderia, agora, dar um baile, sem mulheres?… Ou animar o banho de mar, sem os seus corpos nervosos, fremindo, seminus, sob o tecido fino dos maillots?…

No dia primeiro do mês, milhares de homens (sobretudo os noivos) tinham-se suicidado. Alguns andavam alegríssimos, mas disfarçavam a satisfação sob um sorriso convencional e uma frase triste: “Coitadas! Quem diria, hein?…” E fingiam que enxugavam uma lágrima ao canto do olho. E a cidade ia retomando, aos poucos, o ritmo comum da sua vida, quando uma notícia sensacional a envolveu, de ponta a ponta: tinha-se descoberto uma mulher em uma das ilhas da baia! Era moça, de 17 anos, e de uma beleza estranha. Segundo explicaram, mais tarde, os sábios da Academia de Medicina, essa moça, de compleição robustíssima, tinha no sangue uma substância qualquer (uma emosilina, se não me engano) que neutralizara o tóxico secretado pelo espirilo inimigo das mulheres. O fato é que o governo teve que recolher a dama à Casa da Moeda, como um tesouro, porque 1.200.000 homens se tinham proposto, ao mesmo tempo, para seu marido. A dama, que era pobre e tinha pelo casamento uma atração ingênua, quase enlouquecera de alegria, e ficara indecisa entre milhares de moços e velhos, ricos uns, poetas outros, apaixonados e amantes quase todos…

O presidente da República propusera-lhe casamento sob pretexto de precisar garantir a continuidade da espécie e a salvação do gênero humano, mas, logo os ministros também se candidataram e ameaçaram o Estado de uma revolução sangrenta. Ia resolver-se o caso por meio da loteria (entrando como candidatos apenas os homens principais da República) quando se soube que a moça fugira da Casa da Moeda com o tenente comissionado da guarda. A decepção, nas altas esferas administrativas, foi, como pode imaginar-se, violentíssima. Por toda parte mobilizaram-se forças à procura dos fugitivos, que foram, afinal, encontrados em Mato Grosso, vivendo, poeticamente, à margem do rio Paraná. Fuzilado o tenente, guardou-se a dama entre ferros, de sentinela à vista, numa fortaleza da Barra. Cinco dias depois apareceram mortos os guardas, e a fortaleza sublevada: o comandante fugira com a única Eva do mundo. A esse tempo chegavam, do estrangeiro, as mais tentadoras propostas ao nosso governo, para ceder a dama. Os Estados Unidos dispensavam todas as dívidas e ainda nos mandavam 26.000.000.000 de dólares em ouro. Isso representava a salvação da nacionalidade. Mas onde estaria, àquelas horas, a mulher fatal? Um mês depois, um telegrama do chefe da estação de Jacareiva, no Paraná, anunciava a queda de um avião nas proximidades. O raptor morrera e a dama estava ferida. Transportada em um navio de guerra, para a capital da República, o governo internou-a numa casa de saúde guardada por 10.000 homens em armas, com canhões e metralhadoras. Ia fechar-se o negócio com os Estados Unidos. Do Rio a San Diego foi uma esquadra inteira, comboiando a única mulher que existia na Terra. Naquele país, porém, ocorreram tantas desgraças por sua causa que o governo yankee resolveu dar outros 26.000.000.000 de dólares para que ficássemos com ela. Aceitamos o negócio, que nos fazia, de repente, riquíssimos. Infelizmente, ao pisar em terra pátria, rebentou uma revolução que tinha como intuito principal eliminar o presidente da República, indigitado noivo da rapariga. Uma parte da tropa, fiel ao governo, entrincheirou-se numa fortaleza, com a dama fatídica. A notícia de que a única mulher do mundo estava a dois passos da avenida enlouqueceu os rebeldes. Durante três dias e três noites sitiaram o forte e arrasaram-no à bala. A última Eva foi encontrada entre os mortos com o coração atravessado por uma estocada. Dizia-se que fora morta por um sargento que perdera o juízo ao vê-la ao alcance de sua mão e de seu desejo. Enterrada por um grupo de soldados, muitos cidadãos tiveram notícia do lugar para onde lhe tinham levado o corpo e assaltaram-no, à noite, com as armas na mão. Foi resolvido, afinal, incinerar-lhe o cadáver para pôr termo à pendência, e as suas cinzas, perfumadas à “Mitsouko” por um dos seus milhares de adoradores, foram espalhadas a 1.000 metros da praia, em Copacabana. Assisti, chorando, àquele espalhar de poeiras que eram o resumo de 40 séculos de amor e de ilusão…

Ao outro dia, o mar, em Copacabana, amanheceu revolto. Avançando 100 metros sobre a praia, destruiu a Avenida Atlântica e só amainou depois que lhe espargiram, no dorso violentíssimo, as cinzas de um homem…

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