segunda-feira, 17 de março de 2014

Conto para o 1º ano da Escola Estadual Professor Morais - "Beleza interior", de Carlos Fialho

Ela era linda por dentro. Desde o momento que a conheci, vi logo que era. E pra mim, isso é muito mais importante, sabe? O que a gente tem dentro da gente, a nossa essência, o nosso âmago, a nossa índole, a força de caráter em cada um, a personalidade. Porque tudo é efêmero, finito, passageiro e insignificante, exceto o que a gente leva dentro. Casas podem ruir, carros enferrujam, ou se espatifam em postes e ficam mais amassados que um maracujá, ou que a pele da minha avó, propriedades podem deixar de ser de quem são, dinheiro se acaba. Aliás, eu costumo dizer sempre: dinheiro é papel. O importante é o que tá aqui, ó (e aponto para o coração). As pessoas sempre concordam com isso. É batata. E também ficam enternecidas como se estivessem vendo um daqueles comerciais que passam no Natal. De panetone ou de banco, não importa. E também criam uma empatia comigo sempre que digo isso. Tem sido muito bom pra me socializar melhor com as pessoas, me tornar mais popular, virar um boa praça. Mas não é só fingimento ou atuação canastrona não. Eu realmente acredito nisso e repito com toda a convicção: “Dinheiro é papel. O importante é o que tá aqui ó (mão no coração)”.



Quando minha mãe conheceu a Sabrina, disse logo: “Ela é linda por fora e por dentro”. Quase fui às lágrimas com a aprovação materna. Juro por Deus que fiquei emocionado. As mães sabem mesmo das coisas. Passei a me dedicar totalmente a Sabrina. Era uma devoção irrefreável. Preocupava-me demais com ela. Tanto que, por vezes, meu excesso de zelo causava certa estranheza nela. Dizia que eu era superprotetor, que estava exagerando e essas coisas que a gente diz quando está se sentindo sufocado. Mas eu não podia me conter. Amava cada parte do corpo daquela mulher. Essa é a verdade. E só essa é a verdade.

Mas Sabrina era realmente encantadora. Tudo bem que eu tive lá meus motivos para me envolver com ela, mas qualquer um seria facilmente atraído por ela. Sabrina era única. Era uma dessas mulheres que podia conseguir tudo, tudo mesmo, com um simples sorriso. Seu charme era arrebatador e jamais perdia o encanto, nem ao se sujar de molho rosê comendo um sanduíche, nem mesmo ao cortar as unhas dos pés. Linda pra valer. Morena dos olhos verdes. Fenótipo perfeito, genótipo promissor.

No entanto, e apesar de todas as evidências, passei seis meses com ela para ter certeza. Sou um homem cauteloso, cuidadoso, metódico, perfeccionista. Por isso, convivi seis prazerosos meses antes de me decidir. Preparei tudo para o “nosso” momento. Tinha que ser perfeito. Afinal, seria um momento único na vida dela. Seria num apartamento à meia luz, aliás, iluminado por velas. A comida seria de primeira e um champanhe genuinamente francês temperaria nossa noite. A louça utilizada no jantar também seria a que eu sempre guardo para ocasiões especiais e usaria um terno de corte italiano. Flores ornamentariam todo o ambiente e o nosso fundo musical seria de canções instrumentais suaves e românticas, cuidadosamente gravadas para criarem um clima crescente até chegar ao ápice que marcaria a hora mágica da grande noite.

Eu estava muito excitado e, por conseguinte, com muita fome. A ansiedade é pródiga em me abrir o apetite. Estava com tanta fome que até meio Big Mac dormido esquecido na geladeira me faria salivar. Mas havia lagosta e um suflê tão chique que seu nome era impronunciável para um homem rude como eu. Ao chegar, Sabrina disse nunca ter me visto tão elegante. Fiquei lisonjeado e convidei-a a entrar. Ela se encantou com o ambiente que eu criei. Todo pensado nos mínimos detalhes. Tudo que já relatei e mais o perfume de bálsamo que se sentia no ar a fizeram perceber que aquela noite seria diferente de todas as outras que passamos juntos.

Conversamos animadamente durante o jantar. Comemos a lagosta, tomamos o champanhe e beliscamos o suflê. Mas ela estava mesmo era curiosa para saber o motivo daquela produção toda. O que estava por trás daquilo, afinal? Não sou um cara cruel. Tenho mesmo o coração mole. Por isso, não fiz muito suspense. A certa altura, propus um brinde. Um brinde ao instante definitivo que viveríamos naquela noite. Ela sorriu, seus olhos brilharam e sorveu o conteúdo de sua taça lentamente como que se deliciando com cada gole, tentando fazer com que seu champanhe durasse para sempre. Ela era mesmo muito meiga. Nem mesmo quando terminou de beber sua taça e caiu com a cara na mesa deixou de ser linda. Sorte eu ser um homem atento, pois pude aparar seu rosto com o guardanapo de linho que havia providenciado para a ocasião e ela não sofreu nenhum dano.

Assoviei e os paramédicos vieram do quarto. Carregamos seu corpo adormecido para a banheira cheia de gelo. As extrações foram rápidas, apesar de não haver necessidade de pressa. O sonífero que eu colocara em sua taça era do bom. Modéstia à parte, sou especialista em “Boa Noite, Cinderela”. Os rins, fígado e coração iriam para a África do Sul, pra transplante. 38 mil Dólares pelos rins, 43 mil pelo fígado e 50 mil doletas pelo coração. O cérebro e os pulmões iriam para a suíça, ser estudados em uma renomada universidade. Nesse caso o pagamento era em Euros. A pele ia pra Paris. Estilistas utilizavam em modelos conceito de novas coleções. Casacos de pele humana são o que há. 100 mil Euros por uma couraça de responsa como a de Sabrina. As córneas iriam pra São Paulo, também pra transplante. 60 mil Reais. Precinho camarada pros amigos brasileiros. Pensei muito no que ela me disse sobre sua vontade de conhecer o mundo. Ela tinha paixão por viajar. E eu a ajudaria a realizar esse sonho. E o que é melhor, de uma vez só.

Fiquei lá, olhando e esperando os doutores terminarem a operação enquanto eu comia o resto do jantar. Pronto. Missão cumprida. Agora é só despachar o material e pagar os parceiros envolvidos. Falando assim, aparece até meio frio, mas na verdade não é. Eu sou bastante profissional, admito, mas a verdadeira razão disso é que eu sou um apaixonado pelo que faço. Amo minha atividade que, por acaso, também é bastante rentável. Mas mesmo que eu não recebesse um tostão por isso, continuaria traficando órgãos. Pois dinheiro é papel. O que vale é o que tá aqui ó (e aponto para o coração).

Eu também sou muito bonito por dentro.

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